quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O mendigo e a abóbora

Chego tarde do trabalho, ainda levando o almoço que pedi no escritório, mas foi substituído por café e uma barrinha de cereal por pura falta de tempo. Abro a geladeira para guardar o laminado intacto com duas divisórias e escrito na tampa: carne seca com moranga; encontro várias caixinhas similares, sobras de restaurantes, que sempre guardo por dois motivos, é prático para quem mora sozinho e por uma promessa que fiz (a la Scarlett O'Hara genérica) um tempo atrás, de "nunca mais desperdiçar comida!", não tenho vergonha nenhuma de sair com sacolinha de qualquer restaurante – aí decido esquentar algumas no forno, as melhores que tinha, e levar para uma praça perto de casa, onde sempre havia alguém dormindo, no mínimo um, no máximo cinco, conhecia bem a rotina por causa dos meus passeios noturnos com as bichinhas, era a hora que eu tinha.

Enquanto esquentava, achei talheres lacradinhos, que vinham dos vários deliverys que pedia, separei guardanapos, fiz um suco (tá, confesso que não era um suco, era só um desses chás de limão em pó, light, mas era gostosinho, o que tinha na hora e tava um calor danado – e vai que um dos moradores de rua fosse diabético?), arrumei tudo bonitinho em duas sacolas, dignas de uma libriana e detalhista ao extremo. Evitei levar as yorks, que ficaram revoltadas e sem entender porque perderam o passeio noturno, mas achei que não combinava muito com a ocasião e podiam causar algum constrangimento. Prometi desbravar o lado oposto do bairro na volta, até em voz alta, mas acho que não entenderam ou concordaram muito, pois encontrei o caos na sala e na copa ao retornar, o caos de cachorros com menos de um quilo e meio, mas tinha desde revistas rasgadas, papel higiênico como serpentina de carnaval até presentinhos escatológicos onde nem costumava ter.

Rumei para a Praça Luís de Camões, onde fica o Memorial Getúlio Vargas, no subsolo dessa praça circular, debaixo de um mini lago artificial, perto do Hotel Glória, obviamente no bairro de mesmo nome. Era só seguir um pedacinho da Rua do Russel, circundar o muro da Igreja do Outeiro (onde moravam um bando de gatos gordos alimentados pelas senhouras aposentadas e malucas da vizinhança), atravessar uma ou duas ruas e já chegava, cinco minutos do apartamento onde morava, entre a Taberna e Amarelinho da Glória, estratégico.

Só que logo no início, vi um homem se preparando para dormir na entrada do metrô, titubeei em entregar um dos meus 'quitutes' na dúvida de quantos eu iria encontrar na tal praça, o plano inicial era para os moradores de lá, nas sacolas, o número exato para o máximo do contingente que já tinha visto, era melhor contar com a sorte, ter só quatro naquela praça, não passar vexame, sobrar uma e na volta entregar para o cara do metrô. Andando, pensando e fazendo essa conta, eu que tinha saído de casa me achando quase uma Madre Teresa, me sentia agora uma versão da Chapeuzinho Vermelho e avarenta, mas apertei o passo.

Antes de chegar no local onde dormem, um pouco mais tranqüilo, no fundo da praça, escuro e perto de algumas árvores, passo pelos brinquedos das crianças, desses trepa-trepa, gangorra e balanços coloridos de ferro e típicos de áreas a céu aberto, só que já vazio pelo horário, um boteco quase fechando, uma mesinha e meia porta aberta, de longe um ou outro colega meu, que passeia com os cachorros depois da meia noite, a gente acaba se cumprimentando por causa da rotina. Já na área do tal memorial subterrâneo, vislumbro os cobertores, fecho um olho e aperto, na torcida para não passarem de cinco, justo naquele dia – eram três, ufa.

Normal pensar numa tática de abordagem, mesmo tratando-se de uma 'ação bem intencionada', mas nada se sabe da reação, do dia que tiveram, vai que já comeram, estão no auge do papo com Hipnos, ou o filho dele Morfeu, e só chego para atrapalhar? Isso porque eu odeio ser acordada, medo de gente nunca tive, e isso nem é muita vantagem. Pensando nisso vi que tinha até reduzido os passos, dissipei logo, voltei ao ritmo e evitei ficar traçando qualquer estratégia mental, toda vez que faço isso me lasco, dá tudo errado, acho que funciono melhor no módulo improviso (se tudo der errado devo pensar em ser repentista, vou anotar isso), e, afinal de contas, já tinha chegado até ali, pô! Um trabalhão danado.

Sentei calada no banco de cimento inteiriço que ficava em volta da praça, distância de um metro do último que dormia, comecei a tirar os pacotinhos, fazendo questão de manusear bem as sacolas barulhentas de supermercado que envolviam as matulas, os recipientes dos sucos, saquinhos de talheres, etc. - um deles tinha que me notar, dito e feito. O do meio sai do casulo, levanta a cabeça, praticamente senta, em seguida o que estava mais próximo de mim. Bom, como ninguém falava nada, resolvi quebrar o gelo, tinha que dar uma satisfação também, se deixasse a sacola e saísse correndo, podiam pensar que era uma bomba, se colocasse um pacotinho do lado de cada um, podiam não ver, ía esfriar, e isso é coisa de papai noel, oras bolas.

Comecei: "Oi. Desculpa incomodar, mas trouxe uma comidinha quentinha, alguém tá a fim?", tentei falar com a maior naturalidade possível, como se fosse dia claro e eles tivessem pedido uma entrega expressa, mas meu cérebro dizia justamente o contrário "sua burra, isso lá são horas de fazer 'caridade'?!", eis que o mais próximo, um senhor já com barba branca, calvo mas com o cabelo arrumadinho, colado na cabeça tipo como o antigo gumex, responde: Opa... que belezaaaa! (com ar super amistoso). Respiro aliviada, voltei a ter a sensação de quase Madre Teresa. O segundo também levanta, chama o primeiro da ponta que ainda não tinha se manifestado, começo a distribuir em mãos os 'kits': marmita quentinha, enrolada em papel toalha, garfo, faca e colher (de plástico, mas embalados a vácuo), uma garrafinha de água mineral com suco (que na verdade era Clight Tea sabor limão, com gelo), e guardanapos.

Tudo estava indo muito bem, até o Sr. Uruca (não lembro o nome dele), o terceiro, abrir seu marmitex, justo o que eu tinha escolhido e não comido no almoço, e ler 'carne seca com moranga', ficou transtornado e começou a vociferar: "Moranga? Moranga não é abóbora? Isso é comida de porco! Não como isso não, tá pensando o que?!"

Não entendo como uma pessoa que lida com credores, clientes, contratos, lidera equipes, apaga incêndios empresariais homéricos praticamente todos os dias, numa situação inusitada dessa (que eu mesma crio, eu sei), trava. Fico estática, volto aos seis anos quando não tinha resposta imediata para quase tudo, até aos doze, quando não conseguia falar em público., ou bocejava aos dezesseis, sem saber o que fazer, perto de um namoradinho que me deixava desconcertada.

Juntando minhas forças, e passando os malditos cinco segundos que parecem uma semana, tento negociar com Sr. Uruca, o maior de todos, o único mal encarado, e o mais forte, é claro. "Meu senhor, essa comida é de um restaurante típico, até bom, era o prato do dia, era isso ou sopa de ervilha, que eu comi ontem e não queria repetir, não deu tempo de almoçar, está lacrad...", antes de terminar, Big Uruca já estava mandando eu comer a abóbora, me entregando o garfo e tudo, resmungando: "Já que você pediu, você come..."

Até ía comer mesmo, não só como desafio, mas de raiva, até o último grãozinho de arroz, sem deixar nada pra ele, e sem dizer que tinham mais duas na outra sacola, que estava debaixo do banco e nem tinha tocado ainda, eram três kits em uma, dois na outra. Mas, Seu Jão (o simpático senhorzinho do gumex) resolveu interceder e salvar a situação, sabiamente, pois creio que percebeu que ali poderia perder ou o amigo, ou a fonte das marmitas, já que estávamos quase ao ponto de duelar com os garfinhos de plástico, mas acho que Big Uruca nem ía precisar deles. Seu Jão se aproxima e diz que adora essa carne desfiada, que lembra a comida da mãe, da terra dele... pergunta se quer trocar, oferecendo o dele, era um churrasco variado, tinha lingüiça, fatiados de picanha, fraldinha, cupim, ainda acompanhava batata e polenta frita, negócio fechado.

Uruca aprecia a iguaria, murmura um "agora sim", entre uma batata e um pedaço de lingüiça, eu lembro que esta era uma das primeiras matulas guardadas e congelada no início da semana, sorrio com a leve vingança, apesar da cara ainda estar boa, e eu nunca passei mal com essas sobrinhas congeladas, principalmente depois de ter ido ao forno, mas tenho estômago de avestruz, torci que ele não tivesse. Enquanto isso Seu Jão agradecia e elogiava a tal carne seca com a polêmica abóbora, o segundo nem sei o que comeu, não disse nenhuma palavra, mas também não me xingou, estava concentrado. Calculo que no 'sorteio' tenha saído com o risoto do jantar do dia anterior, pois não vi trabalho algum de partir nada, usou a colher mesmo e deve ter agido rápido depois da confusão, vai que sobra pra ele, ía perder um risoto de camarão com arroz arbóreo, e eu ainda joguei um parmesão ralado antes de colocar no forno.


Missão cumprida, despeço-me e saio, vontade era de sair correndo, mas na tentativa de mostrar valentia, peguei a outra sacola e caminhei devagar, pelo menos até sair do campo de visão, depois acelerei ao máximo, sem correr, mas com vontade de chorar, pensando "o que eu fiz de errado? (…) a que ponto chegou a humanidade..." ou coisa do tipo, analisando todas as atitudes que podia ter tomado e não fiz, fiquei lá gaguejando, até ser 'salva' pelo Seu Jão, que vi outras vezes, levei outras comidinhas, mas sempre me assegurando que o Big Uruca comedor-de-lingüiça-dos-inferno, não estaria por perto. E realmente ele sumiu, vi de longe só uma vez, um dia, quando passeava com as bichinhas, dei meia volta. Deixa ele pra lá, é um caso atípico, nunca tinha visto um desses, não voltei a ver.

Ah, e as outras duas que sobraram, eram um talharim ao alho com frango a passarinho e um filé a parmegiana só com puré de batata, ficou para cara do metrô, que não sei se viu a pequena confusão, mas já me esperava em pé, quase na porta do prédio, não tinha cara de quem dormia na rua, mas correu pra dividir com a namorada, ou esposa não sei, que o esperava ali perto, na escadaria do metrô já fechado. Ainda queria me devolver os talheres e troços descartáveis, além de agradecer imensamente, e vendo aquela cena, dos dois satisfeitos, trocando e provando o que tinha diferente no prato do outro, quase de madrugada sentados coladinhos na escada, voltei a "crer na humanidade", nem tudo estava perdido, e só os vi porque tive que sair de novo, logo em seguida,. com as duas revoltadas que fizeram um piquete hostil dentro do apartamento. Na volta, faminta, não tinha sobrado nada na geladeira, fiz um pão com ovo e dormi.


http://www.youtube.com/watch?v=DXkh8uTkd1E
(vídeo do Memorial)

http://www.panoramio.com/photo/609074
(foto da Praça)

Nota: ENXUGAR. Ficou extenso demais e prolixo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

22 de Maio

Hoje é um dia estranho


Um dia do ano que eu nunca esqueci

Sabia da importância que você dava a ele

Ái de mim se não ligasse, não fizesse um esforço para estar perto, almoçar no mínimo


Depois do almoço, eu me levantaria para fumar um cigarro, você diria: "Já vai né?" , fazendo uma careta. Eu responderia: "Já volto!" , sorrindo, mas não por deboche, respeito. Brincando que você exagera, mas até pq meus desafios tem limite, nunca fumei confortavelmente na sua frente, como te conheço bem, mentir seria pior que o vício que condena.


Os assuntos, os mais variados. Entre eles um escárnio ou outro, pegando no meu pé, de como faço tudo errado, dizendo que eu não aprendi nada... eu fomentava, contando meus casos, exagerando até, mas precisava lhe dar argumento pra soltar a velha frase: "Mas é muito maluquinha..." outra vez eu riria, quem tivesse perto também, mas você mais ainda.


Não consigo desassociar esses almoços, sem a imagem de você tomando sua cerveja, religiosamente todos os dias, mas nunca lhe vi bêbado, nem ao menos alterado, sabia dosar. No máximo, quando sentia-se "molinho", despedia-se com suas frases e gestos característicos (tão repetidos) e ía tirar seu cochilinho, relaxaaaado, esperando a moleza passar. Não demorava muito, acho que no máximo uma hora, levantava já molhando as plantas e eu nunca entendi pq vc não ficava com aquela cara amarrotada de quem acabou de acordar, nem de manhã! Eu tenho, oras.


E quantos desses cochilos eu perdi quando era menor, você queria me ensinar dormir depois do almoço, eu abominava. Reclamava, esperneava, mas vc era mais forte, eu era pequena, colocava seu braço em torno de mim, deitado de lado, e me prendia, eu virava uma boneca, dessas que as crianças dormem abraçadas. Aí desenvolvi uma técnica: esperava sua respiração mudar, seu braço já não me apertava tão firme (só era pesado), eu escorregava de mansinho, e saía pelo pé da cama, bem devagar. Achava o feito do século: enganei o gigante.


Com o tempo você desistiu de me obrigar a dormir, um dia, depois de muito tempo, eu pedi, aliás, avisei: "Vou dormir com você!", mas aí você não deixou, disse que já era muito grande pra isso, tá bom. Inverti minha técnica, esperava sua respiração mudar, dava um tempo e deitava silenciosamente do seu lado, sentindo o cheiro do seu travesseiro, adormecia. De novo, enganei o gigante, que já não era tão grande, nem tão mais forte, mas acho que gostava de ser enganado, pq nunca reclamou da minha ausência quando era pra eu estar ali, nem da minha presença, quando não devia estar. Ou me enganou todo esse tempo, deixando eu pensar que era eu quem fazia isso.


Hoje vou almoçar sozinha, tentar estar com meus irmãos, você gostaria disso (mas confesso que é uma prática que anda difícil). De nos ver rir, encarnar um no outro, tomar cerveja, comer bem e depois o tal cochilo. Eles eu não sei, eu vou. Tentar sonhar com o tempo que era uma boneca esmagada, no lugar mais seguro do mundo, protegida pelo gigante.


Feliz aniversário, pai! (eu acordei pensando nisso, mas esse ano não dá pra te ligar)

Do Olfato - cão perdigueiro

Pode ser por não ter uma visão muito privilegiada, mas meu olfato é coisa que intriga, até a mim às vezes. Sou capaz de localizar meus travesseiros, trocados numa arrumação rápida e devolver com exatidão os que estavam substituindo. Reconheço pessoas assim também, até as que não usam perfume algum.
Tem odores que me fazem voltar no tempo, mudar de cidade, estado, alguns até evito, outros coleciono.
Guardo na memória o hálito de leite de cachorrinhos recém nascidos, ainda de olhinhos fechados, deviam colocar isso em vidros; ou da cozinha de nossas avós, suas alquimias, até o mingau mais simples é característico, não se compra em lugar algum. As casas tem odores específicos, seus hábitos ficam no ar, impregnam, até os mais discretos, quiçá os de fumantes, colecionadores de pássaros, livros, tapetes antigos... Já enxerguei muito mais com o nariz do que com os olhos. Até na audição eu confio menos! Outro dia eu ri por dentro, quando minha mãe perguntou pq minha irmã tinha chegado mais tarde, ela respondeu que "era um seminário, as aulas tinham se estendido mais", mas eu senti o cheiro de dois ou três chopps, mentira também tem cheiro, ela me confessou mais tarde.

Lembrei disso agora lavando as mãos, usei um sabonete líquido que trouxe do outro apartamento e senti falta da água quente, meu olfato confunde até o tato.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Final de semana em Paquetá

Recebo o convite de um amigo querido, mas não estava muito empolgada, já tinha ido outras vezes e não tem muito que fazer por lá – ainda mais com chuva, dei a desculpa que não tinha com quem deixar minhas cachorras (era mentira, o zelador mal humorado do meu ex prédio, sempre cuidava delas; na verdade acho que eram os únicos seres com quem ele se comunicava). Bom, não colou, escutei de volta um: "Trás as bichinhas, bom que elas passeiam, tem tanto espaço aqui..." etc., etc., etc.

Como não tinha nada programado mesmo, respirei fundo, peguei uma mochila com uma muda de roupa, ração, vasilhas para água/ comida, coleiras, caminha, brinquedinhos e um táxi para a Praça XV. Isso não foi tão rápido assim, e, associado a minha fama de sempre me atrasar, fez com que o resto do pessoal que me aguardava na saída das barcas, todos de cara amarrada pra mim, perdessem o tal do jumbo ket ou jumboquete (sei lá como escreve isso), que é o meio mais rápido, uns 25 minutos e tivemos que ir de barca comum, que leva mais de uma hora e vinte.

Na chegada, administra-se cinco pessoas, dois cachorros, mochilas, isopor e outros cacarecos em três "eco-taxis" (p/ quem não conhece, é um cara numa bicicleta, puxando um banco atrás, que cabem duas pessoas – o único carro de Paquetá é a ambulância do posto de saúde), até a casa do meu amigo, que nos aguarda ansiosamente, com um churrasco engatilhado, debaixo de uma chuva, agora torrencial.

No caminho vou pensando, com duas york shires molhadas no colo: "calma Paula, não pode ser tão ruim assim, cervejinha gelada, churrasquinho, natureza, bate-papo com amigos..." Daí lembro que sou amiga dos "meninos" e as namoradas só fingem que me suportam, com raras exceções, porque a maioria nunca gosta mesmo da tal da melhor amiga do namorado, muito menos da intimidade que você tem com ele (mesmo tendo adquirido tal grau no decorrer de uns quinze anos). Outro sopro de otimismo: relaxa, vc sempre tirou isso de letra, e se essa(s) infeliz(es) durar(em) mais de dois meses – o que é raro – acaba abrindo a guarda, esforçando-se ao máximo para virar sua "amiga de infância"; fato que nunca vai acontecer, dado ao histórico anterior *(nossa, tomara que nenhuma delas nunca leia isso!)

Ao virar a esquina da histórica casa de Paquetá, já escuto música vinda de lá e estou mais tranqüila (ou resignada), meu amigo espera abrigado na varanda e avisa aos outros que chegamos. Algazarra normal de chegada, cumprimentos tradicionais milenares, encarnação na minha pele por causa da demora e do meu tradicional atraso, eis que escuto lá de dentro (e de uma voz desconhecida): "Enfim chegou essa mineira!".

Silêncio quase uterino, olho p/ cara dos meus amigos, que nesse momento parecem estar – todos - contando as jacas maduras do pé da entrada da casa e descubro, após uma contagem mental rápida, que estou entre quatro casais, duas cachorras e um idiota com avental feminino, espeto numa mão e uma sobre-coxa de galinha na outra. Era tudo um plano.
nota: pq será, minha nossa, que seus amigos casados, nunca estão satisfeitos com sua cômoda solterisse e ficam arquitetando maneiras de te apresentar para as figuras mais estranhas do planeta e não confiam na sua capacidade de arrumar homem por conta própria?! (ou mulher, se for o caso).


Pensei em voltar no mesmo eco-taxi, mas, além do constrangimento geral, seria muito sacrifício para os dois serzinhos molhados que trazia, agora, dentro do casaco (Nina e Malu). Novamente a versão Polliana do meu lado menos realista ainda tenta: "deixa de ser ranzinza, Paula! Eles não fizeram por mal... essa sua sensação de que é uma pizza delivery é coisa da sua cabeça... a cara de bocó dele também (ainda mais com esse avental ridículo) é só um choque inicial.... vai que o cara é legal..."

O cara, era primo-da-namorada-do-amigo-do-meu-amigo, recém chegado de Fortaleza, falava alto, muito, babava um pouco, andava esquisito - meio que esbarrando em tudo, interagia nos momentos errados, sentia-se o centro das atenções (e era, né!), a última coca do deserto, com a certeza de que EU era a tal da pizza - meia pepperoni, meia quatro-queijos - e o pior: oferta da casa!

Exercitei ao máximo o meu lado Zen, pensando internamente "Na guerra é pior, na guerra é pior..." - o que foi motivo de orgulho para os meus amigos - que já apostavam entre eles quando eu iria arremessar o cinzeiro de pedra-sabão na testa do infeliz, até o momento que o indivíduo resolve abrir o leque de piadas, iniciando por uma de mineiro e na seqüência presenteando cada um dos convivas, além do anfitrião, com uma pérola; seja por raça, credo, futebol, tipo físico e por aí vai... Nessa hora ganhei apoio geral, sem precisar mover um dedo e num pacto mental, embebedamos o chato (que, lógico, se dizia "fortíssimo pra bebida") e botamos pra dormir. Não cabia outra atitude mais drástica, é uma ilha, não tem como expulsar o cara no meio na noite – eu votei no afogamento, mas era um voto mental, eles fingiram que não me escutaram.


Dia seguinte, abriu um solzinho mixo, o pessoal acordando (menos o Costinha, versão suicida), eu com um "ar superior" e um olhar tipo: viram, seu putos, o que vocês arrumam pra mim?!; coloquei as coleiras e fui dar um passeio com as duas (me achando): "Vamos meninas, pegar uns carrapatinhos importados e sujar as patinhas de lama".

Lá os cachorros ficam soltos, mesmo os de raça, não tem como eles saírem a nado mesmo. Meia hora depois começo a achar estranho a quantidade de cão na rua, e todos perto de mim, numa observação mais detalhada, nessa altura a matilha tinha aumentado, noto que todos eram machos e continuavam chegando... aí que caiu a ficha: as duas estavam no cio. Catei as bichinhas no colo, dei meia volta, apertei o passo rumo a casa, sendo seguida por uns 20 a 30 cachorros (não, não é exagero), com a língua enrolada o olhar vidrado, de todo tipo e tamanho.

Chego esbaforida e pálida, minha pose superior já tinha ido pro saco há muito tempo, com uma yorkshire debaixo de cada braço, conto o que aconteceu, o povo tem uma crise de riso e acha que é invenção minha, até olharem para o portão e ver a quantidade de "pretendentes" esperando do lado de fora – montaram acampamento mesmo, tivemos que fechar a casa toda para as duas não fugirem e o "genro" mais probo que eu podia arrumar, era um basset abusado que passou por um buraco mínimo na cerca.

Depois de muito tempo, eu trancada do lado de dentro, vigiando as duas, com o Costinha de ressaca me fazendo companhia, e todo mundo se divertindo lá fora, os tarados foram desistindo e a situação volta ao "normal".


Come-se, bebe-se, alguns tiram um último cochilo, hora de ir embora, tudo arrumado, peço uma charrete p/ não arriscar, desço na praça principal (acho que é a única), todo mundo reunido, última barca, caminhamos pra fila, eu só carregava as duas "ladies", o povo levava o resto das coisas pra me ajudar... vem o Gran finale: surge um sheepdog, tosado, do nada, pula EM MIM, de um jeito que eu não conseguia me soltar, ele em pé era quase da minha altura, eu gritava com as duas no colo, cada um caiu para um lado de tanto rir, ninguém conseguia fazer nada, toda a população da cidade vendo, o pipoqueiro é que veio me socorrer, o sheepdog não largava nem a porrete, só faltou um cigarrinho no final e beijo na boca.

Entro na barca, sento de cabeça baixa num lugar mais afastado, meus amigos em volta de mim com lágrimas nos olhos de tanto rir e sem fôlego, percebo algumas pessoas apontando e contando pra outras (raras) que não viram a cena; tento mentalizar que eu não sou eu, que tudo foi sonho, que nem saí de casa nesse final de semana, que a *orra daquela barca não cabe mais de duzentas pessoas e está lotada, mas não adianta muito, foram as quase duas horas mais longas da minha vida.

Nunca mais voltei lá, mas toda vez que um engraçadinho vai, volta dizendo que viu um sheepdog perto das barcas, olhando pra baía com ar distante, uivando triste... FDP!

Mentirosa Profissional

Quinta-feira, véspera de feriado, sozinha na empresa, era a única hora que conseguia realmente colocar ordem no meu trabalho, sem nenhum incêndio pra apagar. Quando terminei tudo, ainda era 'cedo' perto da minha rotina, quase oito da noite, resolvi me dar um presentinho - normalmente eu me recompenso por bom desempenho.

Entrei na locadora virtual, que sempre me avisa quando tento locar um filme que já vi, o que acontece com freqüência, e ainda leva e busca em casa, evitando que pague uma multa de umas vinte vezes o valor do talzinho, que também esqueço de entregar.

Bem, era só escolher os filmes, passar num supermercado 24 horas, comprar um vinhozinho, uns comes, chocolate, pipoca, um belo banho, merecia até umas velinhas na sala, um incenso com cheirinho de talco que só eu acho pra mim mesma*, camiseta velha e puída, relax total, programa perfeito – nem se o Victor Fasano ou o Raul Gazolla me chamasse pra sair eu iria, precisa desse ritual e sozinha.

Enquanto escolhia os filmes, nada de drama, suspense ou terror, eis que surge um banner do lançamento do último pornô do Alexandre Frota, rapidamente fechei, como se fosse uma cena de atropelamento de uma ninhada de pandas, chinchilas, ou qualquer bichinho fofo numa morte cruel. Nessa hora me dei conta da bendita educação mineira castradora, resolvi me rebelar, que droga é essa, que com mais de trinta anos, morando sozinha, diretora de uma empresa, responsável por um monte de pepino o dia inteiro, e não posso nem matar a curiosidade de como seria o do Frota?! Não... tudo errado. Voltei na seção que nunca tinha clicado, me enchi tanto de coragem que aluguei o Frota, um tal de Rocco, e mais uns dois com títulos bem esdrúxulos – empolguei.

Depois lembrei do porteiro do prédio e o zelador, eles iam entregar lá, vem num saquinho, mas e se abrissem o saquinho só pra ver? Selecionei mais uns desenhos da Disney, só pra despistar, fora os que já tinha separado antes. Bolei tudo: chego depois da entrega, porque vou passar no supermercado, entro direto, vão me chamar para entregar a bagaça da sacola, eu finjo que não ouço o primeiro chamado, do tipo bem distraída, quando insistirem eu volto, faço cara de "sim, pois não...", na hora que me entregarem eu falo: "Filmes? Que filmes? Não pedi filme algum..." E coloco a culpa toda no Clayton, meu roommate, que dividia o apartamento comigo naquela época, mas estava sempre viajando, inclusive naquele feriado. Plano Perfeito.

Cheguei de taxi, com as sacolas de compras e repetindo mentalmente todos os passos que iria fazer, cumpri tudo direitinho, com exceção do que minha mãe sempre diz, que minhas narinas abrem quando estou mentindo, mas ela não estava ali, só tive que convencer o Sr. João, o porteiro, e fiz tudo com tamanha maestria, que mesmo ele tendo visto o Clayton sair mais cedo com as malas, acreditaria que eram para alguma doação e ele voltaria para pegar os aguardados (?) filmes.

Morava no primeiro andar, o mesmo da portaria, assim que virei a esquina do corredor que dava para minha porta, não contive um risinho de Garfield, completamente satisfeita com a performance e me achando o suprasumo da esperteza, dei até um pulinho, rebolava e assoviava enquanto abria a porta.

Entrei, guardei as compras, comecei a preparar o ambiente, antes do banho fiz questão de conferir a sacolinha e ver se todos os DVDs estavam lá, os inocentes na embalagem original, os perigosos em caixinhas pretas, abri uma por uma e lá estavam: Rocco I, Rocco II, Frota... Consegui! Finalmente eu era uma balzaquiana moderna, independente, absoluta – sem lembrar a parte da hipocrisia da portaria, é claro.

Durante o banho lembrei do super-hiper-mega potente home theater do meu amigo Clayton, que tinha acabado de comprar e que tinha que bater na parede do quarto para atender o telefone e nem assim o danado ouvia, o apartamento era muito pequeno para a potência daquele aparelho, as paredes tremiam, e ainda tinha comprado um CD do Bruno e Marroni para inaugurar o troço, nossos estilos musicais eram das poucas desavenças que tínhamos, se não fosse a única. Lembrei também que a TV dele era no mínimo umas cinco vezes maior que a minha, e ele sempre oferecia para usar o quarto e eu nunca nem entrava, só quando a diarista trocava nossas camisas e eu tinha que destrocar.

Decidido, enquanto tirava o shampoo do cabelo, concluí que depois de tanto sacrifício não ía ver o Frota numa TV de 14 polegadas no meu quarto, ainda mais que meus óculos tinham sumido, não usaria o tal home theater, mas a TV gigante era bem melhor. Transferi os planos e os apetrechos para o quarto ao lado, coloquei a camiseta velha puída, acendi as velinhas da sala, o incenso, selecionei minha primeira vítima, coloquei a postos no aparelho de DVD, a pipoca no microondas, e fui abrir o vinho que tinha deixado de antemão na geladeira. Não era uma noite perfeita?

ERA. Porque logo em seguida, enquanto ainda lutava com o saca rolhas na cozinha, o troço liga sozinho lá no quarto, num volume que não dá para descrever, acho que o Clayton tinha testado a potência daquela joça antes de viajar, no máximo, o filme ficava parado num trecho onde você escolhe os capítulos, a legenda, sei lá mais, e fica repetindo uma parte onde o Frota come uma policial em cima do capô do carro, e o fundo musical era só: "OHHhhhh, AAHHhhhhh, OooHHhhh, Vaaaaiii, AAHHhh(...)" - nisso, eu corri com o vinho na mão, o saca rolhas, o prédio inteiro escutando os gemidos, acho que até a esquina e o bairro, tinham cinco controles remotos (?) na minha frente, eu nervosa tentava apertar todos sem sucesso algum, o interfone tocou, desesperada arranquei da tomada todos os fios, consegui desligar, sentei esbaforida no chão do quarto e fingi que tinha morrido, porque não ía atender aquele interfone de jeito nenhum. Quem tocou acho que também percebeu isso e ainda bem, desistiu.

Resolvi passar o feriado trancada ali, rezando para que acontecesse algum escândalo maior no prédio e esquecessem o meu. Lembrei do meu vizinho de frente, o Cabo-verdense que eu atormentava há mais de um ano, desde o dia que ele pediu uma 'mulher delivery' e ela por engano bateu na minha porta, sem contar a primeira vez que falei com ele, logo quando mudei, perguntando quantos aniversários ele fazia por mês, já que morava sozinho e todo final de semana tinha "parabéns pra você" lá, e era uma desculpa dele e dos amigos para convidar as meninas, eu ria e dizia que só não o dedurava se me convidasse para as próximas, mas ele morria de vergonha, e eu sabendo disso, sempre que o via, cumprimentava com um sonoro: "Bom Dia, vizinho! Tudo bem? Tem aniversário hoje?!" - e agora era eu que estava na lama, afundada até o tampo da testa.

Tomei o vinho todo, o que mais tinha sobrando pela casa, tentando um estado anestésico e de dormência, assisti um desenho da Disney para desopilar daquilo, dormi e acordei com o telefonema que meu pai não estava muito bem, tive que colocar a cara pra fora, pegar um avião para BH e deixei na portaria TODOS os filmes, já que a locadora ía buscar – SETE dias depois, era promoção.

Quando voltei, achei que todo mundo tivesse esquecido, até notar o risinho dos porteiros e passar pelo vizinho de Cabo Verde, que me cumprimentou efusivamente: "Bom dia, vizinha! Vai ter festa hoje de novo?!".


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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Rio 55°

Depois de várias visitas de um amigo de Belo Horizonte, que fazia um MBA no Rio, e ficava uma vez por semana hospedado lá em casa, numa dessas noites de alto verão carioca, morando em cima de um conhecido restaurante na Glória*, havia um ar condicionado antigo, desligado, no chão do meu quarto. O calor era tanto que esse amigo pergunta, pela décima vez, se o troço funcionava ou não, eu sempre respondia: “Sei lá, Marcos... tenho que pedir alguém para instalar essa bagaça, mas ainda não tive tempo, esqueci...”.


Eis que esse viajado amigo, com fotos em cima de camelo na Arábia, elefante na India, abraçado com coelhinhas da Playboy na comemoração do cinqüentenário da revista em NY, sugere que era besteira minha, era só ligar o troço na tomada e pronto. Na hora estranhei, perguntei do buraco na parede (que estava tampado com uma madeirinha), da necessidade de TODOS os aparelhos que conhecia funcionarem enfiados nesse tal buraco, ele ignorou qualquer comentário e já se prontificou em arranjar tudo. Pegou uma cadeira, colocou a uma distância suficiente do fio até a tomada, fechou janelas, porta da suíte que dava para o banheiro, a do próprio quarto, ainda 'lacrou' com uma toalha no chão, e ligou aquela batedeira gigante e empoeirada que fazia um barulhão danado.


No começo, eu calada, com uma cara de “isso ainda vai dar merda”, mas confiando na experiência do dito cujo e na segurança das suas explicações em torno de todo o processo. Um leve brisa fresquinha começa a sair pela frente do aparelho, o estimado e carinhoso amigo, ainda troca meus travesseiros de lugar e aconselha que eu durma assim, de ponta cabeça para a cabeceira da cama, com a cara virada para a batedeira que cuspia o mísero arzinho frio.


Ficamos sentados um certo tempo, um do lado do outro, bem na pontinha da cama, dividindo um pequeno espaço que saía a tal da brisa, sugeri até que, depois de tanto trabalho, ele dormisse ali também, usufruindo da geringonça, a cama era de casal, somos amigos há tanto tempo, mas, todo respeitador e meio constrangido, declinou e foi para quarto dele, onde ía dormir com as janelas abertas mesmo, e um ventilador comum. Antes de sair ainda recomendou que não esquecesse de voltar com a tolha vedando a porta, “para concentrar o ar frio”.


Pensei um pouco na minha alergia, lembrei que ele garantiu que o filtro existia pra isso – que os ácaros não pulariam todos num ataque coletivo às minhas narinas e daria tudo certo. Assim adormeci, cansada, pensando em como sou sortuda por ter amigos tão espertos e que cuidam de mim.


Não sei ao certo quanto tempo passou, acho que umas duas ou três horas, mas, de repente comecei a sonhar com afogamento, canibais me cozinhando viva, trechos da bíblia que falam sobre “arder no mármore do inferno”, e coisas do gênero. Acordei tentando buscar ar, numa apnéia que não passava nem quando abri os olhos, que por sinal não mandaram comando nenhum ao cérebro de onde eu estava, só lembranças de uma sauna, já que caíam gotas quentes do teto, tinha uma sopa de água parada no chão, eu encharcada, com as bochechas vermelhas, só não entendia a cama ali no meio.


Consegui dar um salto e abrir a porta, com a toalha ali prendendo, mas saí exprimida por uma frecha e consegui respirar na sala, aos poucos a consciência do que tinha acontecido foi voltando, por pior que seja o verão carioca em pleno janeiro, perto do meu quarto aquela sala parecia o topo de uma montanha, em Bariloche, de tão fresca.


Tinha um sofá branco de couro nessa sala, sentei ali um pouco para acabar de recuperar o fôlego, quando levantei tinha uma marca de suor certinha do meu corpo gravado ali. Era a hora de acordar o maldito estimado amigo, pra ver o resultado do magnífico projeto da sua mente privilegiada. Entro no quarto, com a roupa molhada, os cabelos grudados no rosto vermelho, ainda arfando, ele dormindo serenamente, tranqüilo com os braços abertos; se tivesse forças, juro que teria gritado, mas não consegui, só disse o nome num grunhido entre os dentes e arranquei o lençol do sacripanta, que levanta meio atônito e pergunta se eu estava passando mal.


Não respondi muita coisa, só disse para ir até meu quarto dar uma olhada, ele levanta, vai até lá e não faz absolutamente nada. Não conseguia, teve uma crise de riso que caiu no chão ali mesmo, na entrada, que saia um bafo quente, e a água já chegava até a entrada da sala. A porcaria da brisa(zinha) que saía da frente do ar condicionado, não era 5% do ar quente que escapava por trás, nessa troca de ar viciado então, cada vez mais quente, num quarto abafado, construí uma sauna, com direito até teto molhado, só faltou um spray de eucalipto, e as manchas da água no chão de taco, não saíram, entreguei o apartamento assim, dois anos depois.


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Pé de página:

*era primeiro andar, a sala e um pedaço do primeiro quarto ficava estrategicamente em cima da churrasqueira do self service, o neon de propaganda iluminava esse mesmo quarto e ainda era vermelho, me sentia num bordel, se um dia tivesse ido em algum.