quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O mendigo e a abóbora

Chego tarde do trabalho, ainda levando o almoço que pedi no escritório, mas foi substituído por café e uma barrinha de cereal por pura falta de tempo. Abro a geladeira para guardar o laminado intacto com duas divisórias e escrito na tampa: carne seca com moranga; encontro várias caixinhas similares, sobras de restaurantes, que sempre guardo por dois motivos, é prático para quem mora sozinho e por uma promessa que fiz (a la Scarlett O'Hara genérica) um tempo atrás, de "nunca mais desperdiçar comida!", não tenho vergonha nenhuma de sair com sacolinha de qualquer restaurante – aí decido esquentar algumas no forno, as melhores que tinha, e levar para uma praça perto de casa, onde sempre havia alguém dormindo, no mínimo um, no máximo cinco, conhecia bem a rotina por causa dos meus passeios noturnos com as bichinhas, era a hora que eu tinha.

Enquanto esquentava, achei talheres lacradinhos, que vinham dos vários deliverys que pedia, separei guardanapos, fiz um suco (tá, confesso que não era um suco, era só um desses chás de limão em pó, light, mas era gostosinho, o que tinha na hora e tava um calor danado – e vai que um dos moradores de rua fosse diabético?), arrumei tudo bonitinho em duas sacolas, dignas de uma libriana e detalhista ao extremo. Evitei levar as yorks, que ficaram revoltadas e sem entender porque perderam o passeio noturno, mas achei que não combinava muito com a ocasião e podiam causar algum constrangimento. Prometi desbravar o lado oposto do bairro na volta, até em voz alta, mas acho que não entenderam ou concordaram muito, pois encontrei o caos na sala e na copa ao retornar, o caos de cachorros com menos de um quilo e meio, mas tinha desde revistas rasgadas, papel higiênico como serpentina de carnaval até presentinhos escatológicos onde nem costumava ter.

Rumei para a Praça Luís de Camões, onde fica o Memorial Getúlio Vargas, no subsolo dessa praça circular, debaixo de um mini lago artificial, perto do Hotel Glória, obviamente no bairro de mesmo nome. Era só seguir um pedacinho da Rua do Russel, circundar o muro da Igreja do Outeiro (onde moravam um bando de gatos gordos alimentados pelas senhouras aposentadas e malucas da vizinhança), atravessar uma ou duas ruas e já chegava, cinco minutos do apartamento onde morava, entre a Taberna e Amarelinho da Glória, estratégico.

Só que logo no início, vi um homem se preparando para dormir na entrada do metrô, titubeei em entregar um dos meus 'quitutes' na dúvida de quantos eu iria encontrar na tal praça, o plano inicial era para os moradores de lá, nas sacolas, o número exato para o máximo do contingente que já tinha visto, era melhor contar com a sorte, ter só quatro naquela praça, não passar vexame, sobrar uma e na volta entregar para o cara do metrô. Andando, pensando e fazendo essa conta, eu que tinha saído de casa me achando quase uma Madre Teresa, me sentia agora uma versão da Chapeuzinho Vermelho e avarenta, mas apertei o passo.

Antes de chegar no local onde dormem, um pouco mais tranqüilo, no fundo da praça, escuro e perto de algumas árvores, passo pelos brinquedos das crianças, desses trepa-trepa, gangorra e balanços coloridos de ferro e típicos de áreas a céu aberto, só que já vazio pelo horário, um boteco quase fechando, uma mesinha e meia porta aberta, de longe um ou outro colega meu, que passeia com os cachorros depois da meia noite, a gente acaba se cumprimentando por causa da rotina. Já na área do tal memorial subterrâneo, vislumbro os cobertores, fecho um olho e aperto, na torcida para não passarem de cinco, justo naquele dia – eram três, ufa.

Normal pensar numa tática de abordagem, mesmo tratando-se de uma 'ação bem intencionada', mas nada se sabe da reação, do dia que tiveram, vai que já comeram, estão no auge do papo com Hipnos, ou o filho dele Morfeu, e só chego para atrapalhar? Isso porque eu odeio ser acordada, medo de gente nunca tive, e isso nem é muita vantagem. Pensando nisso vi que tinha até reduzido os passos, dissipei logo, voltei ao ritmo e evitei ficar traçando qualquer estratégia mental, toda vez que faço isso me lasco, dá tudo errado, acho que funciono melhor no módulo improviso (se tudo der errado devo pensar em ser repentista, vou anotar isso), e, afinal de contas, já tinha chegado até ali, pô! Um trabalhão danado.

Sentei calada no banco de cimento inteiriço que ficava em volta da praça, distância de um metro do último que dormia, comecei a tirar os pacotinhos, fazendo questão de manusear bem as sacolas barulhentas de supermercado que envolviam as matulas, os recipientes dos sucos, saquinhos de talheres, etc. - um deles tinha que me notar, dito e feito. O do meio sai do casulo, levanta a cabeça, praticamente senta, em seguida o que estava mais próximo de mim. Bom, como ninguém falava nada, resolvi quebrar o gelo, tinha que dar uma satisfação também, se deixasse a sacola e saísse correndo, podiam pensar que era uma bomba, se colocasse um pacotinho do lado de cada um, podiam não ver, ía esfriar, e isso é coisa de papai noel, oras bolas.

Comecei: "Oi. Desculpa incomodar, mas trouxe uma comidinha quentinha, alguém tá a fim?", tentei falar com a maior naturalidade possível, como se fosse dia claro e eles tivessem pedido uma entrega expressa, mas meu cérebro dizia justamente o contrário "sua burra, isso lá são horas de fazer 'caridade'?!", eis que o mais próximo, um senhor já com barba branca, calvo mas com o cabelo arrumadinho, colado na cabeça tipo como o antigo gumex, responde: Opa... que belezaaaa! (com ar super amistoso). Respiro aliviada, voltei a ter a sensação de quase Madre Teresa. O segundo também levanta, chama o primeiro da ponta que ainda não tinha se manifestado, começo a distribuir em mãos os 'kits': marmita quentinha, enrolada em papel toalha, garfo, faca e colher (de plástico, mas embalados a vácuo), uma garrafinha de água mineral com suco (que na verdade era Clight Tea sabor limão, com gelo), e guardanapos.

Tudo estava indo muito bem, até o Sr. Uruca (não lembro o nome dele), o terceiro, abrir seu marmitex, justo o que eu tinha escolhido e não comido no almoço, e ler 'carne seca com moranga', ficou transtornado e começou a vociferar: "Moranga? Moranga não é abóbora? Isso é comida de porco! Não como isso não, tá pensando o que?!"

Não entendo como uma pessoa que lida com credores, clientes, contratos, lidera equipes, apaga incêndios empresariais homéricos praticamente todos os dias, numa situação inusitada dessa (que eu mesma crio, eu sei), trava. Fico estática, volto aos seis anos quando não tinha resposta imediata para quase tudo, até aos doze, quando não conseguia falar em público., ou bocejava aos dezesseis, sem saber o que fazer, perto de um namoradinho que me deixava desconcertada.

Juntando minhas forças, e passando os malditos cinco segundos que parecem uma semana, tento negociar com Sr. Uruca, o maior de todos, o único mal encarado, e o mais forte, é claro. "Meu senhor, essa comida é de um restaurante típico, até bom, era o prato do dia, era isso ou sopa de ervilha, que eu comi ontem e não queria repetir, não deu tempo de almoçar, está lacrad...", antes de terminar, Big Uruca já estava mandando eu comer a abóbora, me entregando o garfo e tudo, resmungando: "Já que você pediu, você come..."

Até ía comer mesmo, não só como desafio, mas de raiva, até o último grãozinho de arroz, sem deixar nada pra ele, e sem dizer que tinham mais duas na outra sacola, que estava debaixo do banco e nem tinha tocado ainda, eram três kits em uma, dois na outra. Mas, Seu Jão (o simpático senhorzinho do gumex) resolveu interceder e salvar a situação, sabiamente, pois creio que percebeu que ali poderia perder ou o amigo, ou a fonte das marmitas, já que estávamos quase ao ponto de duelar com os garfinhos de plástico, mas acho que Big Uruca nem ía precisar deles. Seu Jão se aproxima e diz que adora essa carne desfiada, que lembra a comida da mãe, da terra dele... pergunta se quer trocar, oferecendo o dele, era um churrasco variado, tinha lingüiça, fatiados de picanha, fraldinha, cupim, ainda acompanhava batata e polenta frita, negócio fechado.

Uruca aprecia a iguaria, murmura um "agora sim", entre uma batata e um pedaço de lingüiça, eu lembro que esta era uma das primeiras matulas guardadas e congelada no início da semana, sorrio com a leve vingança, apesar da cara ainda estar boa, e eu nunca passei mal com essas sobrinhas congeladas, principalmente depois de ter ido ao forno, mas tenho estômago de avestruz, torci que ele não tivesse. Enquanto isso Seu Jão agradecia e elogiava a tal carne seca com a polêmica abóbora, o segundo nem sei o que comeu, não disse nenhuma palavra, mas também não me xingou, estava concentrado. Calculo que no 'sorteio' tenha saído com o risoto do jantar do dia anterior, pois não vi trabalho algum de partir nada, usou a colher mesmo e deve ter agido rápido depois da confusão, vai que sobra pra ele, ía perder um risoto de camarão com arroz arbóreo, e eu ainda joguei um parmesão ralado antes de colocar no forno.


Missão cumprida, despeço-me e saio, vontade era de sair correndo, mas na tentativa de mostrar valentia, peguei a outra sacola e caminhei devagar, pelo menos até sair do campo de visão, depois acelerei ao máximo, sem correr, mas com vontade de chorar, pensando "o que eu fiz de errado? (…) a que ponto chegou a humanidade..." ou coisa do tipo, analisando todas as atitudes que podia ter tomado e não fiz, fiquei lá gaguejando, até ser 'salva' pelo Seu Jão, que vi outras vezes, levei outras comidinhas, mas sempre me assegurando que o Big Uruca comedor-de-lingüiça-dos-inferno, não estaria por perto. E realmente ele sumiu, vi de longe só uma vez, um dia, quando passeava com as bichinhas, dei meia volta. Deixa ele pra lá, é um caso atípico, nunca tinha visto um desses, não voltei a ver.

Ah, e as outras duas que sobraram, eram um talharim ao alho com frango a passarinho e um filé a parmegiana só com puré de batata, ficou para cara do metrô, que não sei se viu a pequena confusão, mas já me esperava em pé, quase na porta do prédio, não tinha cara de quem dormia na rua, mas correu pra dividir com a namorada, ou esposa não sei, que o esperava ali perto, na escadaria do metrô já fechado. Ainda queria me devolver os talheres e troços descartáveis, além de agradecer imensamente, e vendo aquela cena, dos dois satisfeitos, trocando e provando o que tinha diferente no prato do outro, quase de madrugada sentados coladinhos na escada, voltei a "crer na humanidade", nem tudo estava perdido, e só os vi porque tive que sair de novo, logo em seguida,. com as duas revoltadas que fizeram um piquete hostil dentro do apartamento. Na volta, faminta, não tinha sobrado nada na geladeira, fiz um pão com ovo e dormi.


http://www.youtube.com/watch?v=DXkh8uTkd1E
(vídeo do Memorial)

http://www.panoramio.com/photo/609074
(foto da Praça)

Nota: ENXUGAR. Ficou extenso demais e prolixo.