terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Mentirosa Profissional

Quinta-feira, véspera de feriado, sozinha na empresa, era a única hora que conseguia realmente colocar ordem no meu trabalho, sem nenhum incêndio pra apagar. Quando terminei tudo, ainda era 'cedo' perto da minha rotina, quase oito da noite, resolvi me dar um presentinho - normalmente eu me recompenso por bom desempenho.

Entrei na locadora virtual, que sempre me avisa quando tento locar um filme que já vi, o que acontece com freqüência, e ainda leva e busca em casa, evitando que pague uma multa de umas vinte vezes o valor do talzinho, que também esqueço de entregar.

Bem, era só escolher os filmes, passar num supermercado 24 horas, comprar um vinhozinho, uns comes, chocolate, pipoca, um belo banho, merecia até umas velinhas na sala, um incenso com cheirinho de talco que só eu acho pra mim mesma*, camiseta velha e puída, relax total, programa perfeito – nem se o Victor Fasano ou o Raul Gazolla me chamasse pra sair eu iria, precisa desse ritual e sozinha.

Enquanto escolhia os filmes, nada de drama, suspense ou terror, eis que surge um banner do lançamento do último pornô do Alexandre Frota, rapidamente fechei, como se fosse uma cena de atropelamento de uma ninhada de pandas, chinchilas, ou qualquer bichinho fofo numa morte cruel. Nessa hora me dei conta da bendita educação mineira castradora, resolvi me rebelar, que droga é essa, que com mais de trinta anos, morando sozinha, diretora de uma empresa, responsável por um monte de pepino o dia inteiro, e não posso nem matar a curiosidade de como seria o do Frota?! Não... tudo errado. Voltei na seção que nunca tinha clicado, me enchi tanto de coragem que aluguei o Frota, um tal de Rocco, e mais uns dois com títulos bem esdrúxulos – empolguei.

Depois lembrei do porteiro do prédio e o zelador, eles iam entregar lá, vem num saquinho, mas e se abrissem o saquinho só pra ver? Selecionei mais uns desenhos da Disney, só pra despistar, fora os que já tinha separado antes. Bolei tudo: chego depois da entrega, porque vou passar no supermercado, entro direto, vão me chamar para entregar a bagaça da sacola, eu finjo que não ouço o primeiro chamado, do tipo bem distraída, quando insistirem eu volto, faço cara de "sim, pois não...", na hora que me entregarem eu falo: "Filmes? Que filmes? Não pedi filme algum..." E coloco a culpa toda no Clayton, meu roommate, que dividia o apartamento comigo naquela época, mas estava sempre viajando, inclusive naquele feriado. Plano Perfeito.

Cheguei de taxi, com as sacolas de compras e repetindo mentalmente todos os passos que iria fazer, cumpri tudo direitinho, com exceção do que minha mãe sempre diz, que minhas narinas abrem quando estou mentindo, mas ela não estava ali, só tive que convencer o Sr. João, o porteiro, e fiz tudo com tamanha maestria, que mesmo ele tendo visto o Clayton sair mais cedo com as malas, acreditaria que eram para alguma doação e ele voltaria para pegar os aguardados (?) filmes.

Morava no primeiro andar, o mesmo da portaria, assim que virei a esquina do corredor que dava para minha porta, não contive um risinho de Garfield, completamente satisfeita com a performance e me achando o suprasumo da esperteza, dei até um pulinho, rebolava e assoviava enquanto abria a porta.

Entrei, guardei as compras, comecei a preparar o ambiente, antes do banho fiz questão de conferir a sacolinha e ver se todos os DVDs estavam lá, os inocentes na embalagem original, os perigosos em caixinhas pretas, abri uma por uma e lá estavam: Rocco I, Rocco II, Frota... Consegui! Finalmente eu era uma balzaquiana moderna, independente, absoluta – sem lembrar a parte da hipocrisia da portaria, é claro.

Durante o banho lembrei do super-hiper-mega potente home theater do meu amigo Clayton, que tinha acabado de comprar e que tinha que bater na parede do quarto para atender o telefone e nem assim o danado ouvia, o apartamento era muito pequeno para a potência daquele aparelho, as paredes tremiam, e ainda tinha comprado um CD do Bruno e Marroni para inaugurar o troço, nossos estilos musicais eram das poucas desavenças que tínhamos, se não fosse a única. Lembrei também que a TV dele era no mínimo umas cinco vezes maior que a minha, e ele sempre oferecia para usar o quarto e eu nunca nem entrava, só quando a diarista trocava nossas camisas e eu tinha que destrocar.

Decidido, enquanto tirava o shampoo do cabelo, concluí que depois de tanto sacrifício não ía ver o Frota numa TV de 14 polegadas no meu quarto, ainda mais que meus óculos tinham sumido, não usaria o tal home theater, mas a TV gigante era bem melhor. Transferi os planos e os apetrechos para o quarto ao lado, coloquei a camiseta velha puída, acendi as velinhas da sala, o incenso, selecionei minha primeira vítima, coloquei a postos no aparelho de DVD, a pipoca no microondas, e fui abrir o vinho que tinha deixado de antemão na geladeira. Não era uma noite perfeita?

ERA. Porque logo em seguida, enquanto ainda lutava com o saca rolhas na cozinha, o troço liga sozinho lá no quarto, num volume que não dá para descrever, acho que o Clayton tinha testado a potência daquela joça antes de viajar, no máximo, o filme ficava parado num trecho onde você escolhe os capítulos, a legenda, sei lá mais, e fica repetindo uma parte onde o Frota come uma policial em cima do capô do carro, e o fundo musical era só: "OHHhhhh, AAHHhhhhh, OooHHhhh, Vaaaaiii, AAHHhh(...)" - nisso, eu corri com o vinho na mão, o saca rolhas, o prédio inteiro escutando os gemidos, acho que até a esquina e o bairro, tinham cinco controles remotos (?) na minha frente, eu nervosa tentava apertar todos sem sucesso algum, o interfone tocou, desesperada arranquei da tomada todos os fios, consegui desligar, sentei esbaforida no chão do quarto e fingi que tinha morrido, porque não ía atender aquele interfone de jeito nenhum. Quem tocou acho que também percebeu isso e ainda bem, desistiu.

Resolvi passar o feriado trancada ali, rezando para que acontecesse algum escândalo maior no prédio e esquecessem o meu. Lembrei do meu vizinho de frente, o Cabo-verdense que eu atormentava há mais de um ano, desde o dia que ele pediu uma 'mulher delivery' e ela por engano bateu na minha porta, sem contar a primeira vez que falei com ele, logo quando mudei, perguntando quantos aniversários ele fazia por mês, já que morava sozinho e todo final de semana tinha "parabéns pra você" lá, e era uma desculpa dele e dos amigos para convidar as meninas, eu ria e dizia que só não o dedurava se me convidasse para as próximas, mas ele morria de vergonha, e eu sabendo disso, sempre que o via, cumprimentava com um sonoro: "Bom Dia, vizinho! Tudo bem? Tem aniversário hoje?!" - e agora era eu que estava na lama, afundada até o tampo da testa.

Tomei o vinho todo, o que mais tinha sobrando pela casa, tentando um estado anestésico e de dormência, assisti um desenho da Disney para desopilar daquilo, dormi e acordei com o telefonema que meu pai não estava muito bem, tive que colocar a cara pra fora, pegar um avião para BH e deixei na portaria TODOS os filmes, já que a locadora ía buscar – SETE dias depois, era promoção.

Quando voltei, achei que todo mundo tivesse esquecido, até notar o risinho dos porteiros e passar pelo vizinho de Cabo Verde, que me cumprimentou efusivamente: "Bom dia, vizinha! Vai ter festa hoje de novo?!".


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